sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Aqui a vida não é um direito… é um privilégio

"A frase “aqui a vida não é um direito, é um privilégio” é retirada do filme “O Exótico Hotel Marigold”, que esteve recentemente em exibição nos cinemas, e retrata o sentimento de quem chega, vindo de uma cultura ocidental, a uma populosa cidade indiana, como os sete reformados ingleses que, aliciados por uma agência, esperavam passar o resto dos seus dias num sumptuoso hotel, usufruindo de uma vida luxuosa por um preço acessível, e se confrontam com um antigo palácio totalmente degradado.
A cultura europeia do século XX cimentou-se, nomeadamente após a segunda guerra mundial, na disseminação de direitos pelos seus cidadãos depois de séculos de muitos deveres e em que os direitos estavam reservados a elites privilegiadas. A “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, proclamada pela ONU em 1948, tornou-se a matriz orientadora de toda uma proliferação de proclamações de direitos nas décadas seguintes. São, assim, solenemente proclamados os direitos das crianças, dos idosos e dos deficientes, os direitos das mulheres e dos trabalhadores, o direito a férias e à reforma, o direito à saúde e à educação, os direitos dos consumidores e até os direitos dos animais.
Para consolidar esta cultura, qual cereja sobre o bolo, a muitos destes direitos foi adicionada a sua irreversibilidade, tornando muitos deles nos designados “direitos adquiridos” que, consequentemente, não podem ser retirados.
Se esta cultura de direitos proporcionou décadas de bem-estar, estabilidade e segurança aos cidadãos europeus criou, por outro lado, graças ao paternalismo estatal que a todos quis proteger e consequente zona de conforto que proporcionou, dificuldades de adaptação a situações de crise, como a que vivemos atualmente, em que poderá estar em causa a possibilidade de manutenção de direitos julgados inamovíveis e garantidos para a vida. A resistência em sair do statu quo e procurar novas alternativas é dolorosa, afirmativa e por vezes violenta.
Foi esta dificuldade de adaptação a uma cultura diferente da sua que levou os sete reformados ingleses do filme citado a sentirem-se enganados e desiludidos ao chegarem ao suposto paraíso que haviam sonhado em terras indianas. Porém, a superação das resistências, conseguida através da secundarização da reivindicação de direitos relativamente à opção pela velha máxima “em Roma sê romano”, levou-os a redescobrir a alegria de viver. Apenas uma das reformadas não conseguiu sair da sua culturalmente assumida zona de conforto, vivendo num inferno até optar pelo regresso à sua confortável pátria.
Porém, os direitos acima referidos vistos a uma escala global são privilégios na acessão literal do termo, ou seja, um bem ou uma prerrogativa a que poucos têm acesso, uma vantagem que é concedida a alguém com exclusão de outros. Com efeito, neste mundo globalizado os fenómenos cada vez têm de ser vistos, entendidos e enquadrados numa perspetiva traduzida no neologismo “glocal”, ou seja, com dimensão local mas com com projeção e consequências universais.
Nesta perspetiva muitos dos direitos acima referidos como o direito à vida, à saúde, ao trabalho, à educação, etc. vistos numa perspetiva mundial não passam, sem necessitarmos de recorrer a estatísticas que o comprovem, de puros privilégios aos quais apenas uma reduzida percentagem da população mundial tem acesso.
Se a nível local (Portugal, Europa…) nos entrincheirarmos nesta teia de direitos que fomos tecendo, com particular incidência nos últimos cinquenta anos do século passado, estaremos certamente a construir verdadeiras muralhas de resistência às mudanças que nos estão a entrar avassaladoramente pelas nossas fronteiras dentro e sucumbiremos seguramente nas teias que nós próprios tecemos.
Não será mais sensato entender os direitos que detemos nesta perspetiva global, ou seja, como simples privilégios? Passarmos a interiorizar que a vida, a saúde, a educação, o trabalho, a reforma são privilégios e que, como tal, não estão absolutamente seguros e garantidos como não o estão para a maior parte da humanidade? Provavelmente esta mudança de atitude permitiria encarar com menor angústia a perda de direitos que está diariamente a acontecer, aceitar a sua reformulação para que possam ser mantidos a níveis sustentáveis e, porque não, encontrar novas alegrias de viver onde nunca sonhámos encontra-las."

Adelino Alves Cardoso 
Consultor, Formador e Docente do Ensino Superior

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